Da inutilidade das Palavras

Por Cadernos de Rishikesh - Nei Silva em 29/06/2021
Da inutilidade das Palavras

"Could you write it down, please?", solicitei ao professor de música que colocasse no papel a explicação que iniciara sobre o seu método de ensino.

"No English good speak I", foi sua resposta entristecida imaginando assim o fim da negociação que fazíamos.

"Neither do I!"(nem eu!), respondi solidarizando-me, e comungando com o indiano as mesmas desavenças com a língua de Shakespeare e talvez por isto tenha decidido tomar aulas de Sitar com um indiano que não fala Ingles. A Música e os sons que se encarregassem de transcender as palavras, idioma, bandeiras e passaportes.  

O método é simples:

Sem palavras o professor toca uma nota ou uma melodia, e acena para eu repita; ele se alegra quando acerto e fica desolado com meus erros. Fácil e perfeito! Uma comunicação sem intermediários. Eu ouço de seu Sitar uma nota que se chama Dha, eu toco a minha nota LÁ. Economizamos três traduções desnecessárias: a primeira quando ele transforma o SOM tocado na palavra Dhar, a segunda da palavra Dhar para LÁ e a terceira que eu faria convertendo a palavra LÁ na nota que deveria ser tocada. Fantástico! Quem dera fosse-nos permitido fazer isto de forma ampla e irrestrita. Quem dera pensássemos uma coisa, e ao invés de dizer a palavra pensada, emitíssemos um som universal que ecoasse sem sentido pré-definido, alcançasse os destinatários ouvidos que o interpretariam sem a necessidade de se amparar em conceitos, formas, conteúdos... Palavras... O som pelo som, sem necessariamente se transformar em palavras.  Até hoje, somente a música consegue fazer este papel, de comunicação entre pessoas, e isto é fascinante.

 

Ainda divagando sobre a possibilidade de um som transmitir uma ideia, um sentimento, imagino qual seria aquele que, sem intermediários, nos remeteria o sentido de um "muito obrigado"? Ou o que teria a capacidade de replicar um "bom dia!"? Nem me atrevo a propor um som que tivesse a responsabilidade de transmitir um " EU TE AMO!", seria, provavelmente, uma sinfonia refinada de compassos perfeitos, resoluções marcantes, quiçá deceptivas. Ou por outro lado, quem sabe não seria o som do "EU TE AMO" uma simples nota colocada na hora certa, no preciso momento em que a cabeça do ente amado nada esperasse, nada pensasse, e por isto mesmo, sem sentidos pré-definidos, sem expectativas, sem receios, medos, nem conceitos, deixasse ser tomada pela pureza da singela nota...

Por outro lado, que sentimentos emergiriam do som de uma buzina de um tuk-tuk (triciclo indiano)? "SAÍ DA FRENTE!!!!", imagino.

Faço estas inúteis divagações tomando meu café neste paraíso chamado Rishikesh, aos pés do Himalaia e, ás margens do nascente Ganges, aqui chamado de Ganga. Em paz e a salvo dos altos decibéis tuk-tuk-onicos, estabeleço uma quase rotina: Astanga Ioga e meditação pela manhã, leituras, aula de Sitar após o almoço, aula de Ayenga Ioga à tarde (onde uma professora tenta, a machadadas, consertar  o que as décadas de mau uso fizeram com minhas costas) e finalizo as noites no babilônico Freedom Café, Point onde pessoas de várias nacionalidades trocam idéias, experiências de viagem, complementam as possíveis visões de mundo e onde, principalmente, rola muita Música.

Rishikesh é uma das cidades sagradas da India, aqui apareceram os primeiros rishis (yoguis), e a cidade é considerada a Capital mundial da Yoga. Cidade limpa quando comparada com os grandes centros urbanos da India, é um refúgio para quem quer conhecer uma India fora dos estereótipos. Os cafés-restaurantes se instalam à beira de um Ganges limpo (sua nascente fica a poucos quilômetros da cidade). A cidade tem também o privilégio de nos anos 60, terem abrigados os Beatles no período em que eles se interessaram por meditação e coisas do oriente. O álbum branco foi composto num Ashram que nos dias de hoje foi desativado e bloqueado, mas que os fãs da banda (como eu) ainda se aventuram tentar entrar nas ruínas do grandioso Ashram.  

Vivo a alguns meses nesta cidade e sinto como se nela tivesse renascido. A confusão, barulho, tumulto e sujeira de cidades como Mumbai, Delhi não me deixavam ver a beleza de uma India diferente. Aqui sinto-me em casa, especialmente no café Freedom, lugar bem transado com suas mesas baixas e todos sentados, parece democrático. Da Janela, vemos o Ganges, dentro, música da melhor qualidade. Música clássica Indiana, Jazz, Beatles. Sempre aparece alguém diferente de algum lugar do planeta e dá uma. Canja lá.

Eu fiz amizade com um grupo de israelenses apaixonados por música brasileira, e outra vez, os sons musicais, ao invés das palavras, foram o melhor meio de vencer o barulho produzido por dezenas de pessoas provenientes dos quatro quantos do mundo e igualmente ávidos por expressar suas opiniões. Minha incompetência na voz e no violão são minimizados pela paixão do grupo de amigos por Bossa Nova e, por isto mesmo, meus imperfeitos acordes dissonantes são sempre suficientes para os aplausos ao final de um "Eu sei que vou te amar". Quando tem brasileiros na parada, aí é covardia, o bar explode.

Uma noite, um amigo israelense chamado Ione se empolga e começou saiu a cantar Garota de Ipanema num português quase perfeito, apenas uma leve entonação fechada em suas vogais o denuncia. De um grupo de japoneses que ocupava a mesa ao lado emergiu uma japonesa, magra, alta e elegante - digna de um filme de James Bond - que se juntou ao coro animado da canção que Tom Jobim compôs com tanta maestria.  Ao final, todos do bar cantaram a mesma canção em Inglês, mas com toques de português, francês, e outras línguas que não pude reconhecer.

Me surpreendi ao descobrir que, tanto meu amigo israelense, quanto a japonesa nada conheciam de nosso amado idioma tupiniquim. Ione, o israelense havia aprendido a pronunciar os sons ouvindo por horas a fio álbuns inteiros de Bossa Nova que seus pais tinham, a japonesa conheceu a Música por ser muito tocada em seu país.

Voltando ao tema: sons x significados, imagino o que a melodia sincopada brasileira causa na cabeça dos gringos.

" O que significa 'é ela a menina que vem e que passa com doce balanço a procura do mar'?", pergunta-me um curioso.

"O que você sente ao ouvir esta frase?", inverto a questão.

Ele reflete e discorre algo sobre: praia, mulheres bonitas, pessoas rindo num belo dia de sol.

"That is right!", respondo ao meu amigo, constatando que ele capturara o sentido do som, ou da emoção por detrás do som, sem saber o significado das palavras em português. Parece ser o suficiente!

Nesta Babel chamada Freedom Café, volto a questionar-me sobre a utilidade das palavras, e sobre as suas limitações, afinal, que grande mérito existe em saber o exato significado da palavra "Inconstitucionalissimamente"?

Ao meu lado, as águas do imperturbável Ganges parecem rir de minhas inúteis divagações sem respostas.

 

Comentários

  • Demais, tio!
    Tata
    10/07/2021
  • Maravilhoso!
    Ronny
    24/07/2021
Aguarde..